O som da vitrola




Já era bem tarde quando resolveu ligar a vitrola. Fazia frio. Decidiu esquentar um pouco as coisas com o vinil do velho Holly. Lembrou-se da década de cinquenta. Sentia-se cansado, não conseguia mais acompanhar aquele ritmo alucinante. Meio sem jeito, puxou um cigarro. O quarto estava todo fechado. Pensou em abrir as janelas para que a fumaça não incomodasse sua personalidade ranzinza. Bobagem. Queria mesmo diversão. Gostava do som da vitrola com a agulha quebrada. Pensou muitas vezes em adquirir outra, mas desistiu da ideia. As novas não tinham a mesma potência e nem o mesmo charme. Levantou-se da cama para mexer um pouco as pernas. Foi até o armário e pegou uma caderneta da capa vermelha onde fazia anotações. O lápis estava totalmente sem ponta. Odiava escrever daquela forma, mas já não se lembrava mais onde colocara o apontador de ferro. Tremia bastante, mas conseguiu escrever, finalmente, depois de algum esforço. Música número três... Lembre-me de colocá-la todas as noites. Não tenho dormido muito bem. Quem sabe ajude um pouco, escreveu. Pegou uma garrafa de vinho. Bebeu uma taça. Sabia que não podia abusar do álcool. Era só naquela noite, entretanto. Aquela era sua grande noite. O reencontro com tudo que lhe fazia bem. Um reencontro com sua consciência, talvez. O compacto chegara ao fim. Caminhou até a estante. As Marvelettes eram a primeira opção, mesmo com tanto pó na capa. Limpou a sujeira com a flanela que deixava na mesinha ao lado da jarra com água. There must be some word today, from my boyfriend so far away. Please Mister Postman, look and see. Is there a letter, a letter for me?, tocava a vitrola. Tão puro, tão ingênuo, pensou. Sem hesitar, puxou novamente a caderneta. As Marvelettes também serão minhas companheiras. Tenho cochilado bastante depois do almoço, a idade está chegando, sabe, preciso de coisas mais animadas. Indignou-se com a letra “m” da palavra “animadas”. Escreveu com quatro pernas, não com três. Culpou a ponta do lápis por tamanha imbecilidade. Crucificou-se pelo resto da madrugada. Como tinha errado o número de pernas do “m”. Nos tempos de escola sempre fora elogiado pela professora por não cometer aquele erro tão comum. Parou de pensar. Culpou o lápis novamente antes de se dar conta que o outro compacto também chegara ao fim. Era, sim, uma criança inteligente. Recordara-se com orgulho de quando usou a palavra “soberba” na redação do primário. Tinha mais orgulho ainda da cara da professora quando, assustada, ouviu a resposta exata do significado da palavra. “Soberba”. SO-BER-BA, três vogais, quatro consoantes, uma proparoxítona, talvez, falou em voz alta pela primeira vez na madrugada. Parou. Tremeu por alguns instantes. Anotou o vocábulo, sem pressa, na caderneta. Dessa vez usou a caneta tinteiro. Não gostava das canetas, contudo. Os erros, para elas, eram escachados demais, eram visíveis demais. Os lápis eram mais sensíveis, refletiu rapidamente. Soberba, anotara, seguido do verbo ver. Olharia no dicionário mais tarde. Não percebera assim que enganara a si mesmo. Mais tarde perceberia, claro. Pegou outro disco, esquecera a pronúncia do nome do grupo daqueles quatro rapazes. Memória, checar. Ver também essa tremedeira, anotou antes de beber outra taça de vinho e colocar o compacto dos Beatles.

O gosto do choro

Esquecera da sensação do choro. A única coisa que se recordara com precisão era do gosto salgado entre os lábios. As lágrimas não tinham um sabor adocicado, como muitos diziam. Eram como a água do mar. Foi a associação mais pertinente, talvez a única, que lhe veio à mente naquele momento. Tentara explicar aos outros, sem sucesso, o que sentia. Uma secura incontrolável na boca. Gotículas salgadas se encarregavam de amenizar tamanho desconforto. Quando as gotas chegavam ao fim, entretanto, tudo voltava ao normal e os lábios, grossos como os da mãe, estavam novamente revigorados. Não soubera exatamente o que isso significava. Nunca se atentara aos olhos e o que emergia deles nos momentos de profunda solidão. Azuis, verdes ou seriam castanhos mais claros? Também não tinha certeza da cor, há anos não os via no espelho. Lembrou-se da infância. Era o caçula de cinco irmãos. Logo, aprendera a controlar o choro e a segurar a emoção. Lágrimas. Não se recordara com exatidão do significado real da palavra. Ouvira na escola ou teria lido no dicionário, quem sabe. “Chorão”, gritavam as crianças naquela tarde ensolarada de outono. Os ventos secos e cortantes logo soprariam. Sentiu-se culpado e impotente. Encabulara os pais, os irmãos e os familiares ao externar tamanha tristeza. Sentou-se no chão do quarto soturno. Refletiu sem o sentimento de culpa do amanhã. Seria a última vez que derramaria lágrimas. Para sempre. A tristeza latente e os olhos vermelhos, já inchados pelo excesso de líquido, não mais o incomodariam. Aprendera a reconhecer a tristeza pelo gosto seco e salgado que perdurava nos lábios. O único vestígio da dor seria aquele, prometera a Deus. Deus. Se ele não quisesse que você chorasse, talvez não tivesse lhe dado lágrimas, questionara por alguns momentos. Já se esquecera dos dogmas. Aquele era o momento de ignorá-los e estabelecer suas próprias regras. As regras de sua condição insignificante perante o criador da humanidade. Deus. Sentira novamente os lábios salgados. Não se lembrara mais da promessa.

Os campos de morangos




Desde pequeno, sempre ouvira falar daquele local, os campos de morangos. Lá, as pessoas não se preocupavam com muitas coisas. Tudo fugia do óbvio e driblava, ao mesmo tempo, a realidade.

Decidiu conhecer o lugar assim que as pressões no mundo real começaram a torturá-lo cruelmente. Até então, a necessidade de ser alguém na sociedade não tinha tanto peso. Com o passar dos anos, entretanto, a ambição pelo rótulo e a busca frenética pelo pertencimento passaram a corrompê-lo.

Isso afetara sua criatividade, sua maneira única de ver o mundo e enxergar as pessoas. Perdera aos poucos sua sensibilidade. Não pensara duas vezes quando teve a oportunidade de ir até os campos.

As flores tinham um cheiro suave, odor de morangos frescos, apesar de nunca ter sentido tal fragrância. O céu era límpido, sem uma única nuvem, e completamente azul. Nunca anoitecera. O sol estava sempre presente, mas não fazia calor. As pessoas não sabiam os nomes uma das outras. Apenas compartilhavam o mesmo espaço, a mesma sensação.

Uma música leve. Um violão de seis cordas, talvez. Não tinha certeza, o som ficara cada vez mais distante e abafado. A grama desaparecera subitamente. O vento cortante aparecera pela primeira vez. Sua visão, antes clara e alaranjada pela bela aparição do sol, tornara-se escura, lutuosa e soturna. Todos já o reconheciam pelo nome quando decidiu ir embora. Voltaria em outra hora.

Nunca se esquecera daquela sensação, daquele sentimento. Queria ficar ali definitivamente. O mundo real já não lhe pertencia. Nada mais fazia sentido. A obsessão desenfreada por tornar-se alguém nunca estivera tão deturpada e fora de contexto.

Fez a mala. Colocou algumas peças de roupa. Camisetas brancas, um tênis velho, uma par de meias, uma calça jeans manchada e um blazer preto, que tinha o segundo botão quebrado. Deixara um bilhete para o mundo na porta do quarto. Mesmo com as iniciais ilegíveis, devido à tinta ressecada da caneta, a mensagem era clara. Não voltaria mais.

Os campos de morangos esperavam por ele. As pessoas, trajadas de branco, o aguardavam para o ritual de boas-vindas.

Todos esses anos...


















Quando ingressei na faculdade, na metade de 2007, pensei que todos os problemas da minha vida, ou grande parte deles, estariam resolvidos. Em quatro anos, certamente, eu seria mais inteligente e teria as respostas para as questões mais intrigantes. É claro que eu refleti sobre uma possível estabilidade financeira. Afinal, todo esse tempo com as caras nos livros, passando noites e mais noites estudando, trariam resultados expressivos. Nada de muito luxuoso: um carro simples, quem sabe, ou um apartamento próprio.

A mulher da minha vida, finalmente, daria as caras. Depois de algumas decepções, a tal felicidade amorosa estaria bem ali, a poucos metros. Como qualquer outro jovem de 19 anos, imaginei que minha vida sexual passaria por grandes avanços! Esperara ansiosamente por festas e, claro, as chamadas orgias universitárias!

O plano, até então, era perfeito. Não que eu tivesse a intenção de desonrar o nome da família, encher a cara toda semana e, no final das contas, sair com o diploma nas mãos. Longe disso. Queria estudar, adquirir conhecimento, ser um bom jornalista e aproveitar essa época tão importante.

Só havia um problema. Eu tinha me esquecido de compartilhar o plano com os principais envolvidos nele: os professores carrascos, que me crucificavam por erros de vírgula e concordância, as belas garotas do interior, que eu jurava ser mais esperto, e os teóricos esquerdistas, que pregavam discursos idealistas bastante convincentes em pleno século 21.

O problema do calouro é que ele acha que ganhou na Mega-Sena quando entra na faculdade. Pensa que suas angústias, até então imensuráveis, chegaram ao fim e não há mais nada para se preocupar. O mundo é muito pequeno para todos os seus desejos e anseios. Doce engano.

De qualquer forma, demorou um bom tempo para perceber quais seriam os benefícios da faculdade em minha vida. O ensino superior, primeiramente, me fez pensar de outro jeito, a enxergar as coisas de forma diferente, direcionando meu senso crítico.

A faculdade não me fez jornalista. Fez-me um ser humano mais completo e racional. A faculdade me trouxe maturidade suficiente para aprender a lidar com as diferenças, a serenidade inigualável para compreender o próximo e, acima de tudo, competência inexaurível para ouvir.

O dia em que encontrei George Harrison


- Hey, George, trouxe um bolo, cara. É algo simples, nada de muito sofisticado.

- Quem é você? Mais um fã, aposto...

- Bom, não vou negar que te admiro bastante.

- Ok, eu era seu beatle favorito?

- Na verdade, não. Sempre gostei mais do Paul, mas não me interprete mal.

- Você é bem sincero, eu gosto disso. Senta aí, cara. E esse violão?

- Comprei há pouco tempo. É um Giannini trovador, série estúdio.

- Legal. Toca desde quando?

- Desde 2005, mais ou menos. Conhece essa aqui? (tiro o riff de uma música do Buddy Holly).

- Você está fazendo o acorde errado. Tenta na sétima casa, fica melhor (sorri, meio sem jeito).

- Assim?

-Sim. (puxa um cigarro)

- Cara, você vai mesmo fazer isso?

- Eu já estou morto, relaxa.

- Eu sei. Porra, eu lembro direitinho quando aconteceu. E olha que nem te conhecia direito.

- É mesmo?

- Sim, foi em 2001. Estava no carro com o meu pai ouvindo música. O locutor entrou no ar e disse que você havia morrido de câncer no pulmão. Logo em seguida tocou While My Guitar Gently Weeps.

- É uma bela canção, mas o Calpton rouba a cena com aqueles solos (o mesmo sorriso encabulado).

- Eu não acho. A força da música está na sua voz. E todo mundo sabe que você trouxe o Eric para irritar o John e o Paul.

- Pode ser. Você conhece muita coisa. Não vai fazer aquela pergunta clássica?

- Qual?

-"Por que os Beatles acabaram?". Até eu me perguntaria isso...

- Se a banda não tivesse acabado como acabou, vocês não seriam o que são hoje. Pelo menos para mim.

- Como assim?

- Acabou porque tinha de acabar. Não fico me lamentando.

- Falando desse jeito parece até que você sabe mais sobre mim do que eu mesmo.

- Não duvide! Você não vai comer o bolo?

- Por que trouxe isso?

- 25 de fevereiro é seu aniversário, não?

- É 24, cara.

- Eu nunca tive certeza se era 24 ou 25.

- Nem eu, para ser sincero. De qualquer forma, obrigado pelo confeito.

- Vou nessa, George. Valeu pelo papo.

- Vai lá, cara. Gostei de você. Passe por aqui qualquer dia para fazermos um som.

- Com certeza. Caramba, tocar com o George Harrison, heim?

- Sem tietagem (mais um sorriso).

- Pode deixar. Feliz aniversário.

- Hare Krishna.

Nunca soube exatamente quanto e onde o encontrei. Também nunca soube se aquilo era, de fato, verdadeiro ou apenas um sonho. Nunca mais tirei o violão das costas. Ele estará sempre comigo. Não importa aonde vá.

Três pesos e uma medida

Apesar de quieto, sempre fui um cara bastante questionador. Por isso, além de outros motivos, obviamente, escolhi ser jornalista.
Atraia a atenção de todos por fazer perguntas certas nas horas mais oportunas.
"Ótima observação. Belo questionamento, você tirou as palavras da minha boca", dissera o professor naquela manhã.

Era o primeiro dia de aula. Eu, como sempre, não estava muito a fim de papo.
Todos se abraçavam, se beijavam. Perguntavam uns aos outros sobre as férias. Queriam saber as novidades.
Não que estivesse infeliz ou de mau humor. Achava apenas desnecessário, pouco eficaz.
Abri o jornal na esperança de me distrair um pouco. Mera ilusão, o sossego foi efêmero.


- E aí, jornalista, trabalhando muito?
- Um pouco, talvez, resmunguei de canto.
- Nossa, essa sua barba tá bem grande, heim? Há quanto tempo você não faz?
- Sei lá, há dois meses, mais ou menos, respondo meio sem jeito.
- Você pretende tirar? (Para que diabos eu deixaria a barba crescer se tivesse a pretensão de tirá-la?), penso.
- Não agora, respondo displicentemente, como se quisesse dar um ponto final naquele papo matinal estapafúrdio.

Comecei a me questionar, portanto, se eu não estava sendo ranzinza. Afinal, qual era o problema em ser evasivo, fazer perguntas, ir direto ao ponto?
Por um momento, quase me passou despercebido o "bom dia" daquele senhor grisalho, cujo rosto era familiar. Sem hesitar e olhando diretamente nos meus olhos, ele disse:

- Bom dia, essa sua barba é exigência do Estadão ou da namorada?
- Acho que só do Estadão, respondi, esboçando um sorriso, que propiciou boas gargalhadas de ambos os lados.
A conversa não durou mais do que aquilo. Não precisava. Ele já perguntara tudo naquele jogo de palavras.
"Três pesos e uma medida", refleti. Pode ter sido apenas uma brincadeira, mas para mim foi um belíssimo poder de síntese, sabedoria. Algo que só os mestres possuem.
Talvez esteja mesmo no caminho certo...

Carta aos desesperados

Escrever no silêncio da madrugada foi a única forma que encontrei para aliviar a dor latente de minha inquietante alma. Jogar as palavras assim, meio sem jeito, de maneira desconexa, tornou-se aos poucos o melhor remédio. É como se acumulasse os problemas do mundo sobre meus ombros e, ao redigir, todos eles fossem solucionados.

Sinto-me como um redator de sentimentos, que, com palavras, gestos e olhares acumulados, transcreve os anseios do mundo. Absorvo cada uma das sensações. Arrisco-me a dizer que sinto algumas delas. Quando já não suporto mais tamanha sensibilidade, despejo o conteúdo em palavras simples, em frases curtas, em posicionamentos contraditórios.

Escrever sobrecarregado nunca foi um problema. Muito pelo contrário, sempre foi a solução. Talvez o gesto mais nobre que a vida me concedeu para me manter vivo. Um presente escolhido a dedo com o intuito de retribuir minha existência.

Não sentir com a mesma intensidade significa não ter uma razão para existir.

Isso, até certo ponto, tem acontecido com frequência. Talvez tenha perdido esta habilidade. Porém, enquanto existir uma pontinha de sensibilidade, enquanto localizar olhares desesperados no meio da frenética multidão e enquanto enxergar rostos ávidos por uma simples palavra, continuarei a escrever.

Tens aqui minha palavra. Tens aqui mais um texto assinado por mim.